| Rosane Castro
Escritora e Narradora de Histórias
Todas as manhãs ele acordava, esticava os braços “aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii”, e abria o céu, o céu da boca. Depois, preparava a isca e o anzol e pegava suas tralhas de pescaria. Colocava o pé na estrada, depois a perna, compriiiiidaaaaaaaaaaa, e, assim, também, seguia o restante do corpo. Até chegar ao rio levava um bom tempo. Tempo que dava para ler páginas e páginas de um livro, ou ler o jornal do dia de trás pra frente, o que é bemmmm difícil e demora muiiiiitoooo. Mas, Espiga gostava de gastar seu tempo caminhado na estrada de chão batido. Batido de tanto as pessoas pisarem nele e porque ele é todo de terra nada poeirenta.
Desde pequeno recebera esse apelido, que não o deixava nem alegre nem triste, nem irritado. Era muito alto e os outros o achavam desengonçado, mas ele mesmo não achava isso. Gostava da sua altura e do seu jeito diferente de andar. Meio curvado, meio sonolento, passos largos e vagarosos. Enquanto caminhava, Espiga contemplava a natureza que se espalhava pelo longo caminho. E o caminho era looooooooonnnngoooooooooooo mesmo.
Espiga nunca deixava de pescar, mesmo quando chovia. Ele dizia aos poucos amigos que precisava pescar para sonhar. O tempo havia passado depressa demais. A idade havia invadido sua casa e sua vida. Da infância, só sobrara a memória e algumas fotos em preto e branco.
Numa manhã, após ter andado em silêncio pelo caminho compriiiiidoooooo, até chegar à margem do rio, Espiga, como de costume, preparou a isca no anzol e jogou a linha o mais longe que conseguiu e ficou esperando o primeiro peixinho do dia. Enquanto esperava o puxão da linha, ficava contemplando a paisagem. Ele repetia sempre o mesmo ritual. Ficava sempre no mesmo lugar, e ainda assim, admirava boquiaberto a costumeira paisagem.
Espiga dizia que a paisagem nunca era a mesma, porque nós nunca somos os mesmos. Assim como “não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio”, pois na segunda vez já não será o mesmo, uma vez que aquela água já se foi, e é outra… Uma vez leu esse pensamento em um dos livros da escola e nunca mais esqueceu do texto e do nome de quem o escreveu: Heráclito, um grego antiguííííííssimo, que viveu há uns dois mil anos.
Tinha boa memória e cultivava cada uma delas em lugares diferentes da casa. Por exemplo: Na prateleira que ficava do lado esquerdo da porta de entrada, ele guardava a lembrança da sua família, potinhos etiquetados que identificavam o açúcar, o café, o sal, a farinha, o arroz e o feijão. O capricho da sua mãe era mantido naqueles potinhos que se encaixavam um dentro do outro, pois os tamanhos eram diferentes.
E assim, Espiga ia levando a vida no seu mundo de memórias e histórias. De repente, um puxão fez Espiga desequilibrar-se, quase cair, quase, quase. Estava distraído e foi pego de surpresa. Depois de se recompor do susto, lentamente, foi puxando a vara, que se curvava.
– O peixe deve ser grande! – ele pensou.
Ficou Espiga e o peixe naquele vai não vai durante uns vinte minutos. Até que o danado do peixão surgiu debatendo-se no ar. Quando ambos, já estavam cansados da proeza de fisgar e ser fisgado, Espiga acomodou o peixe no balde com água e se virou para recolher a tralha. Ao voltar-se novamente na direção do peixe, levou um susto – o bicho estava sentado na beirada do balde e reclamava em língua que se podia entender.
– Que falta de educação! Não se pode mais nadar sossegado… Quem você pensa que é, seu grandalhão? Sai por aí tirando o sossego dos outros. Não tem nada melhor para fazer? – o peixe reclamava.
– Vamos! Preciso voltar para casa. Devolva-me para o rio ou quer que eu pule daqui como se eu fosse um atleta de salto em distância? Vamos! Vamos! Estou esperando sentado.
O peixe era mandão. Espiga então o obedeceu, temeroso. Fez o que tinha de fazer e não disse uma única palavra.
Voltou para casa e não contou nada a ninguém. Era certo que as pessoas não iriam acreditar que um peixe, além de falar, também ordenava e, o pior de tudo, que ele obedeceu direitinho, direitinho.
Como morava sozinho, seu passatempo era cultivar histórias guardadas no seu pensamento e na sua casa.
Chegando a casa, colocou o anzol em um quadro e pendurou o quadro na parede principal da casa, onde ficavam os retratos de seus avós e de seus pais.
Nunca desistiu da pescaria e seguiu fazendo a longa caminhada. Só que ao chegar à beira do rio, ele tirava a isca do novo anzol e largava a linha vazia na água e ficava horas e horas, contemplando a beleza da paisagem ao redor. À noite, após guardar as tralhas e retornar para casa, ficava sentado de frente para a parede e relembrava cenas da sua vida como se fossem um filme. A mais recente era a história do peixe, mas essa ficava escondidinha num cantinho da sua memória, porque se ele contasse iriam achar que era história de pescador, e dizem que pescador gosta de mentir ou exagerar. Espiga, porém, não era assim, ele apenas gostava de sonhar.
E Espiga sonhava, sonhava, sonhava.
Dormindo ou acordado.