| Saul M. Sastre
Professor, consultor e palestrante
Minha velha faca é um exemplo para mim. Feita de aço resiliente, de vez em quando na lida, até perde o fio, mas basta uma chaira para voltar ao normal e sair cortando com perfeição. Segue a prumo o dito “o que não mata fortalece”.
Por isso não vendo nem troco. Coisas sem valor para alguma maioria podem ser caras para nós, tão valiosas que ninguém consegue comprá-las apenas com dinheiro. Tudo que se pode pagar com dinheiro é barato.
De alumínio, cabo de canela de ovelha. O pobre animal ficou rico, teve a sorte de ornar minha preciosa joia, livrando parte dele do apodrecimento fétido, sina de todo bicho que após ser cortado, comido e ruído é abandonado em um canto para apodrecer. Aquele pedaço de osso protegia minha mão do calor e esfriava meus ânimos do estresse do dia.
Perdi as contas das alegrias que participamos. Acordar pela manhã e ter a doce lembrança de cortar uma apetitosa iguaria regada a álcool, era o combustível que precisava para iludir meu mundo. Não raro, a vida fica repleta de doces miragens que se resultam amargas. Meu velho objeto me ajudava a cortar o gosto ruim das coisas.
Não lembro de nenhum churrasco triste, mas quem já não chorou na volta do fogo? Já fiz aniversário escorrendo água dos olhos e tive que aproveitar as lágrimas para lavar o rosto e entender que a paisagem precisaria mudar. Levei-a junto comigo presa na cintura. Tudo passa e cicatriza. Minha velha e companheira faca é professora na arte do cortes e cicatrizes.
E o tempo corre e dele decorrem outros cenários. Gente cresce e evolui e quem não é gente, regride. Minha faca tem alma de gente com empunhadura de bicho, por isso segue firme na missão. Um dia que a cerveja estava abundante e gelada conversamos longamente, cortamos da própria carne e seguindo seu próprio exemplo, levei umas “chairadas” ergui a cabeça e decidi seguir em frente.
Manter a imagem de quem estimamos por perto, é uma estratégia para não esquecer a alegria da vida. Junto do meu objeto de aço forjado no fogo, guardo fotos de quem amo e que não se importam com a minha utilidade ou inutilidade. Minha faca é um exemplo e com ela cortei o tempo e ganhei rasgos no rosto, mas o coro ainda aguenta e os dados estarão sendo rolados até só sobrar o osso, igual ao da ovelha da minha velha faca.