Ele ganhou os holofotes: famosas cortaram a proteína da dieta, revistas dedicaram grandes matérias ao tema, especialistas lançaram livros condenando o ingrediente. Mas afinal, o que há de verdade em toda essa história de que glúten faria engordar?
1. O que é o glúten?
Ele é uma proteína presente naturalmente em muitos cereais, como o trigo, o centeio, a aveia e a cevada. Ou seja, não é uma invenção da indústria moderna, por exemplo, como foi o caso da gordura trans, só para fazer uma comparação. O glúten confere elasticidade na receita de diversos alimentos, caso típico do pão: ao sovar a massa, o padeiro cria as redes de glúten, estruturas capazes de aprisionar o gás carbônico expelido pelas leveduras do fermento. Assim, o pãozinho cresce e fica macio. “E o pão, você já sabe, é um dos alimentos mais antigos da humanidade, que se multiplicou e evoluiu sem problemas por consumi-lo”, lembra o nutrólogo Mauro Fisberg, professor da Universidade Federal de São Paulo.
2. O glúten poderia causar algum problema de saúde?
Cerca de 1% da população mundial possui a doença celíaca. Nesse tipo de alergia, o glúten não é bem aceito pelo intestino. Quando ele chega ao órgão desses pacientes (e só neles), desencadeia uma reação do sistema imunológico, que destaca células de defesa para atacar a região. Nessa briga, acaba sobrando para as vilosidades intestinais, estruturas que são responsáveis por absorver os nutrientes da comida. Com as vilosidades inflamadas, claro que ela não é aproveitada da forma como deveria, bagunçando completamente o trânsito intestinal, para não dizer o estado nutricional daquele indivíduo. “Os sintomas mais comuns são diarreia, dor, distensão abdominal e inchaço”, lista o gastroenterologista Alexandre Sakano. Mas, atenção, porque aqui estamos falando de uma doença específica que atinge uma em cada 100 pessoas. Histórias fantasiosas de que o glúten engorda até atrapalham a vida desses portadores. Imagine um doente celíaco que afirma, no restaurante da empresa, que não pode comer itens com glúten. No rumor das boatarias, esse sujeito é tomado como alguém interessado apenas em emagrecer e não como portador de um problema que merece respeito e atenção.
3. Como a doença celíaca é detectada?
O primeiro passo é procurar o médico, diante de sintomas como diarreia constante. Se for criança, o certo é levar ao pediatra. Se for adulto, o clínico-geral. Esses profissionais vão começar a investigação, fazendo a análise clínica do paciente. Se houver suspeita de doença celíaca, vale procurar um gastroenterologista, o especialista no sistema digestivo. Ele vai pedir um exame de sangue, para verificar a presença de anticorpos típicos da doença, e uma biópsia do intestino. Caso o distúrbio seja detectado, aí não tem jeito: é preciso cortar todos os alimentos com glúten da dieta. E o acompanhamento de um nutricionista é importante a fim de evitar desfalques de nutrientes importantes para a saúde.
4. Tem gente que acusa o glúten de estar envolvido com alergia, intolerância, sensibilidade, doença celíaca… A cada hora, usam um termo. Qual é o correto?
Quando se fala em doença celíaca, o uso do termo intolerância é equivocado. “Hoje em dia, intolerância ou sensibilidade ao glúten são palavras utilizadas para pacientes que apresentam mal-estar ao consumir alimentos com glúten e que não são celíacos”, explica a nutricionista Mariana Del Bosco, mestre em ciências da saúde pela Universidade de São Paulo.
Normalmente, quando um não celíaco se queixa depois de comer alimentos com glúten, como macarrão, cerveja e pão, recebe o diagnóstico de intolerante ao glúten. Diagnóstico, no mínimo, polêmico. Isso porque não existe um consenso sobre as características desse distúrbio e ninguém pode nem sequer afirmar que ele existe, completa Mariana. Ou seja: tem gente que se sente estufado depois de comer um macarrão, por exemplo. Ou de devorar um bolo. Mas pode ser que o problema seja causado pelos molhos e recheios gordurosos. Aliás, é bem mais provável.
5. Afinal, existe ou não existe intolerância ao glúten?
O assunto é controverso. Alguns especialistas dizem que sim, mas muitos outros garantem que não. Um estudo recém-publicado da Universidade de Monash, na Austrália, levanta questões sobre a existência da tal intolerância ao glúten. Os cientistas recrutaram 37 voluntários que se diziam sensíveis à proteína do trigo e da aveia. Na primeira semana, todos receberam uma dieta rica em carboidratos de difícil digestão. Na semana seguinte, eles foram divididos em três grupos. O primeiro recebeu uma alimentação cheia de glúten, o segundo, refeições com pouco glúten e o terceiro fez uma dieta com zero da proteína. Detalhe: ninguém sabia em qual das turmas tinha caído. No período da experiência, os participantes das três turmas reportaram piora dos sintomas gastrointestinais – mesmo aqueles que não haviam travado contato com uma mísera molécula de glúten. Os autores desse trabalho sugerem com veemência que um forte efeito psicológico possa estar por trás da tal intolerância tão divulgada por aí. E o mais curioso é que o autor da pesquisa, o gastroenterologista Peter Gibson, havia conduzido uma experiência em 2011 que havia comprovado a existência da tal sensibilidade ao glúten. Mas nem ele, que foi um dos primeiros a levantar essa bola, estava satisfeito com os resultados. Sim, a cabeça também conta muito na hora de sentir a barriga pesar. Principalmente quando todo mundo fica encontrando um réu por aí.
6. Há um aumento do número de casos de doença celíaca, o único motivo real para cortar o glúten? Seria por isso que agora todo mundo parece passar mal com essa proteína ou ficaria imaginando passar mal?
Em geral, os médicos não percebem um crescimento dos diagnósticos de celíacos. “A taxa de indivíduos com a doença permanece completamente estável”, analisa o pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg, professor da Universidade Federal de São Paulo. “O que aumentou foi a qualidade dos testes e exames que detectam o problema”, explica. Mas nem isso, diga-se, fez as taxas subirem…
7. Vale cortar o glúten do cardápio sem consultar um médico?
De jeito nenhum. De acordo com os especialistas, alimentos ricos em glúten, dentro de uma dieta equilibrada, trazem inúmeros benefícios para a saúde. “Eles ajudam a controlar a glicemia e os triglicérides, aumentam a absorção de vitaminas e minerais, melhoram a flora intestinal e deixam o sistema imunológico mais forte”, lista o endocrinologista Marcello Bronstein, professor de endocrinologia e metabologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Quem gostaria de perder esse pacote de vantagens? O segredo está no equilíbrio das porções. Retirar o glúten só é indicado quando o médico mandar, isto é, no caso de doença celíaca.
8. O glúten pode estar por trás da obesidade, suspeita que andou sendo levantada por aí?
Cortar o glúten da dieta emagrece. Ora, o indivíduo vai deixar de comer as principais fontes de carboidrato de sua dieta, como pão, bolo, doces… Uma ingestão menor de calorias vai resultar em decréscimos na balança. Ou seja, diminuir calorias faz diminuir quilos na balança. E não por retirar o glúten. Você poderia emagrecer do mesmo jeito se retirasse açúcar, gorduras, qualquer outra substância muito presente em comida que tende a ser mais calórica. “Dietas sem glúten são modismos puros”, diz Bronstein. Por outro lado, um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais, realizado no ano passado, dividiu ratinhos em dois grupos: o primeiro recebeu uma dieta rica em glúten, enquanto a segunda turma passou por uma dieta livre da proteína. Ao final da pesquisa, aqueles que não travaram contato com os cereais tiveram uma redução na gordura, inflamação e resistência à insulina. Vale lembrar que a experiência foi pequena e novas investigações serão necessárias para comprovar a tese. E é um dos únicos trabalhos do planeta nessa linha. “A obesidade é uma doença multifatorial. Se ela fosse causada por uma única proteína, como o glúten, resolveríamos o problema facilmente”, explica Fisberg.
9. Alimentos livres de glúten são mais saudáveis?
Nem sempre – apesar de parecerem, no imaginário das pessoas. Pesquisadores da Universidade de Houston, nos Estados Unidos, mostraram que acrescentar palavrinhas mágicas nos rótulos – “antioxidante”, “orgânico” e, claro, diante de tanto bafafá sem base científica, “livre de glúten” – torna o produto mais saudável do que ele realmente é, pelo menos na cabeça do consumidor. “E o fato de um alimento ser livre de glúten não significa que ele seja menos calórico”, faz questão de observar Bronstein.rados uma hora após a realização do exame.
10. O glúten mudou?
Uma das explicações usadas para banir o glúten da dieta diz que a proteína sofreu algumas modificações maléficas a partir da década de 1960. O pai da teoria é o cardiologista americano William Davis, autor do livro Barriga de Trigo, que já vendeu mais de 1,8 milhão de exemplares e figura há algum tempo na lista de mais vendidos do jornal New York Times. De acordo com a versão, os cruzamentos de espécies de trigo realizados pelo agrônomo Norman Borlaug (1914-2009) causou drásticas – e prejudiciais – alterações na estrutura do glúten. Essas mudanças estariam aumentando os casos de diabete, pressão alta e obesidade. Porém, não existe a menor evidência científica sobre isso. Nenhum trabalho demonstrou que essa hipótese fosse verdadeira, critica Fisberg.